Não que essa seja exatamente uma novidade ou algo surpreendente. Mas na edição 2021 de seu estudo anual Democracy Report, publicada esta semana, o Instituto V-Dem mostrou de maneira indiscutível o que os brasileiros vêm sentindo na pele nos últimos anos: o país vive um acentuado processo de autocratização, e está entre os 10 países onde a democracia mais se deteriorou em 2020.
De acordo com o estudo, desenvolvido desde 2017 por uma equipe multidisciplinar do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, a autocratização se espalhou pelo planeta, e atualmente mais de um terço (34%) da população mundial vive sob regimes em que esse processo avança.
A quantificação desses retrocessos é feita a partir de seis indicadores, que analisam desde a qualidade do processo eleitoral até o índice de participação da sociedade civil nas decisões. E em cada um deles, o Brasil apresentou um declínio que traduz, em números, os danos à democracia desde o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, acentuados a partir de 2019, quando o atual presidente, Jair Bolsonaro, tomou posse.
A publicação cita os ataques do capitão reformado à imprensa. “Censura oficial e hostilidade à mídia não partidária está crescendo com firmeza no Brasil, particularmente depois que o populista de direita Bolsonaro se tornou presidente em janeiro de 2019, incluindo disseminação de informação falsa por parte do governo.”
No estudo, há a constatação de que em todos os países onde a autocratização avança, existe uma “cartilha”, um padrão de ação por parte dos seus líderes, que não costumam atacar imediatamente o coração da democracia – só o fazem depois de golpear e enfraquecer instituições de controle e a própria sociedade, um processo que no Brasil de 2021 parece consolidado.
“Primeiro, eles tentamcontrolar a mídia, bem como a academia e a sociedade civil. Além disso, desrespeitam os oponentes políticos, e alimentam a polarização usando a máquina do governo para espalhar desinformação. Só depois de avançar em todas essas frentes, é hora de um ataque ao núcleo da democracia: eleições e outras instituições formais”.
Entre os seis indicadores usados na mensuração, chama atenção a posição do Brasil no ranking mundial dos componentes igualitário (ECI) e deliberativo (DCI). O primeiro deles, como o nome sugere, está ligado às desigualdades sistêmicas do país, enquanto o segundo diz respeito ao peso da razão e do bem comum nas decisões políticas, em contraponto a apelos emocionais, interesses paroquiais ou coerções.
Pois bem, em relação ao componente de igualdade (ECI), o Brasil é apresentado pela publicação como o 140º entre os 179 países investigados no estudo. Aparece logo abaixo de Fiji (139º) e logo acima da Etiópia (141º). Em 2017, ano da publicação do primeiro Democracy Report, o país era o 114º no quesito. Já no que tange ao grau de deliberação precedente às decisões políticas, o Brasil é o 136º, abaixo da República Centro-Africana (135º), porém acima da Somalilândia (137º). Em relação a 2017, quando o país ocupava o 108º lugar neste ranking, foi ultrapassado por 28 países.
Década de retrocesso
Apesar de estar apenas na sua 4ª edição, o Democracy Report compara os dados obtidos em 2020 aos indicadores apresentados pelos países 10 anos antes. E é aí que a situação brasileira se mostra mais dramática: em 2010, o Brasil marcava 0,79 pontos no índice de democracia liberal (LDI), o quesito mais pesado do estudo. Só para fazer um paralelo, foi a pontuação que a Coréia do Sul obteve este ano, e que a elevou ao grupo das 20 democracias mais fortes do planeta.
De 2010 até 2020, o Brasil apresentou uma variação de -0,28 pontos – foi o 4º país que mais regrediu no indicador em todo o mundo -, e hoje marca apenas 0,51, não sendo mais considerado sequer uma democracias entre as 50 mais robustas.
Fundamentos
Apesar de tantos reveses ao ambiente democrático no Brasil, o estudo ainda considera o país uma “democracia eleitoral” – um conceito que se baseia no cumprimento dos princípios liberais clássicos, por meio de seis garantias institucionais:
- Representantes eleitos;
- Eleições livres e justas;
- Liberdade de expressão;
- Fontes alternativas de informação;
- Liberdade de associação;
- Cidadania inclusiva.
Mesmo assim, só uma virada considerável no rumo dos acontecimentos pode evitar que o Brasil continue despencando no ranking anual do V-Dem. Enquanto isso, seu povo tenta sobreviver à pandemia e ao genocídio enquanto assiste, perplexo e inerte, ao sufocamento das instituições democráticas do país.
Até aqui, Jair Bolsonaro nunca hesitou em enfraquecer, quando teve chance, a jovem democracia brasileira: antagonizou a mídia, armou milícias, desmoralizou as instituições e calou opositores. Seguiu, com louvor, cada ponto da “cartilha” do autocrata. Ninguém poderá se dizer surpreso quando ele se aproveitar das Eleições de 2022 para tentar seu derradeiro ataque.
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