Agremiações centenárias resistem ao tempo e à falta de apoio


Bola de ouro, Lenhadores, Estrela Brilhante e outras instituições são fiéis guardiões da tradição carnavalesca
Texto originalmente publicado em 24 de fevereiro de 2017, na Folha de Pernambuco. Texto em parceria com Marcos Toledo, e fotos de Alfeu Tavares.

Em Pernambuco, o Carnaval é ao mesmo tempo muito simples e bastante complexo. Em tempos de conflitos, uma tradição de mais de 200 anos segue como exemplo e permanece viva mantendo unidos todos os elementos que fazem do tríduo momesco no Estado a festa mais democrática do planeta, capaz de reunir povos de todas as raças, religiões e condições econômicas. Esse exemplo, que remete aos tempos em que os negros escravos se juntavam em grupos que reproduziam suas nações africanas, ainda no século 18, o mesmo acontecendo com os índios nativos, com os costumes de suas tribos, e com os brancos, que levaram para os clubes de frevo a mise-en-scène das procissões quaresmais de origem europeia comuns no Recife em um mesmo período.

Tradicionalmente, o Carnaval em Pernambuco sempre existiu sob a égide conceitual dessa espécie de período de trégua, quando todas essas características convergem e a fantasia de um mundo unido e perfeito parece fazer com que as pessoas convivam em paz. “Cadê Toureiro?/ cadê Bola de Ouro?/ as Pás, os Lenhadores (…)?” Estão aqui, Luiz Bandeira (autor do famoso frevo-canção “Voltei, Recife” desses versos), ao lado de Vassourinhas, Pão Duro, do Cachorro do Homem do Miúdo, do Boi Misterioso e das Verdureiras de São José; dos maracatus Estrela Brilhante, Nação Porto Rico, Nação Elefante, Nação Estrela de Igarassu e Cambinda Brasileira; e dos caboclinhos Cahetés de Goyanna, Canindé do Recife e Rei Tupinambá, instituições centenárias féis guardiões de um sonho que luta para nunca se acabar.

Homenageado do Carnaval do Recife em 2015, ano de seu centenário, o Clube Carnavalesco Misto Bola de Ouro é um dos exemplos de agremiações que tiveram suas tradições resgatadas do museu, como se costuma falar. Fundado em 15 de setembro de 1915, na Rua da Bola, no bairro de Santo Amaro (área central da Capital), manteve-se ativo até 1954, quando foi aposentado. Quase três décadas depois, o então presidente da Federação Carnavalesca de Pernambuco (Fecape), Mário Orlando, entregou o estandarte do Bola de Ouro aos cuidados de Luíza Ramalho, antiga carnavalesca do bairro de São José. Dona Luiza faleceu meses após o centenário, mas já havia envolvido no clube toda sua família – em especial o filho Robervaldo Ramalho, então vice-presidente -, que hoje dá continuidade ao legado da agremiação. “Ela (Luiza) tinha pedido a ele (Robervaldo) que não deixasse essa cultura morrer”, conta Gláucia Araújo de Souza, 50 anos, companheira de Robervaldo e atual vice-presidente.

A exemplo de várias outras agremiações, o Bola de Ouro tem como uma das principais dificuldades o fato de não contar com uma sede própria, além do problema comum a todos os grupos: a falta de recursos. “O maior sonho dela (Lui­za) era ter uma sede”, lembra Gláucia. Atualmente o Bola de Ouro funciona no bairro Bomba do Hemetério (Zona Norte). “Se a gente tivesse uma sede, poderia promover eventos, desenvolver um projeto social e colocar um Carnaval melhor na rua”, explica a vice-presidente, que soma esfor­ços na confecção dos adereços.

Mesmo com as dificuldades, fazendo uso de recursos próprios e da verba da prefeitura, o Bola de Ouro começou a se preparar com antecedência para a folia deste ano, ainda em agosto de 2016, principalmente em função da saúde de Robervaldo, que sofreu um infarto em junho. Com o tema Na Magia Dourada: Bola de Ouro Dá as Cartas, a agremiação explora em seu desfile neste Carnaval os mistérios que envolvem as leituras dos baralhos ciganos.

Assim o legado do clube tem continuidade com a técnica mais antiga da humanidade: os mais velhos tentando despertar o interes­se nos mais novos. “A gente envolve os pequenos, que veem a gen­te fazendo e vai pegando amor”, fala Gláucia. “A gente fica com medo dessa tradição morrer.”

As mesmas dificuldades e esperança de permanência são compartilhadas por agremiações que são administradas por herdeiros de seus fundadores, como o o Clube Carnavalesco Misto Pão Duro, fundado no bairro do Pina (Zona Sul) em 16 de março de 1916. Hoje com sede na Rua Imperial (Centro), o clube é presidido por José Levino Xavier dos Santos, filho de um dos criadores. Sob o tema No Compasso do Frevo, o Pão Duro desfila neste domingo como todo ano, com a força da abnegação de seus integrantes. “É um bocado difícil. É preciso ter muito equilíbrio. Eu faço chapéu, diadema, costuro vestido. Sou completo”, orgulha-se Levino, de 81 anos.

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